Gestação e formação energética da comunidade por Lena Ferreira


As comunidades intencionais são criadas para abrigar as necessidades e os desejos humanos de uma vida plena e feliz. Por isso elas não se parecem com sistemas mecânicos, com suas peças articuladas e operações que podem ser descritas em manuais, nem com empresas burocráticas e hierárquicas. Elas se parecem mais com sistemas vivos, complexos, que possuem corpo, alma e espírito. Por isso, para entender suas características de geração e desenvolvimento, é mais fácil fazer uma analogia com outro ser vivo, como uma planta (semente, plantio, cuidados, crescimento, flor, fruto) ou, melhor ainda, com o ser humano, sua imagem e semelhança – gestação, nascimento, infância, vida adulta, maturidade. E é com esse foco que abordaremos, neste e no próximo texto, a geração e o desenvolvimento da comunidade intencional.

Lena Ferreira por Bernardo Oliveira
Na visão da Pedagogia Social, a geração e a constituição de grupos e, consequentemente, seus empreendimentos, passam por fases específicas de desenvolvimento, análogas às das pessoas. Conhecer essas fases permite favorecer o que elas têm de melhor, além de prevenir ou corrigir conscientemente os problemas apresentados em cada uma.

A partir do momento em que um grupo (comunidade, instituição, empreendimento) é gestado e instituído pelos seus membros – que seriam como seus pais –, ele ganha vida, ganha um nome e uma alma. Podemos até sonhar que ele ganha também um anjo da guarda, um ser incorpóreo de luz que o inspira e protege a partir de outras dimensões não visíveis.

Seus fundadores, assim como todos os pais, primeiramente geram o corpo da comunidade ou, de acordo com a visão antroposófica da Pedagogia Social que nos inspira, geram seus quatro corpos.

No plano material, geram o seu corpo físico, constituído pelos recursos físicos e financeiros: o local, as construções, as benfeitorias. Se chegarmos à comunidade em construção em um domingo, quando ninguém estiver ali, podemos ver talvez uma casa ainda em obras e um escritório já pronto, com mesa, cadeiras e computadores. E, além de plantas, insetos, animais e outros seres vivos de outros reinos que também morarão ali com seus membros, não veremos vida nessa comunidade. Não perceberemos energia em movimento, porque ali só está o corpo físico, o qual, apesar de se configurar como um aspecto muito importante que é o da matéria – que acolhe, agrega e dá segurança –, é apenas um dos aspectos.

Depois voltamos a essa comunidade em um dia de trabalho. Vemos um grupo de pessoas reunidas para planejar, outro executando algumas atividades, e ainda outro orientando trabalhadores. Agora não é só o corpo físico que está lá presente, mas também o corpo vital ou etérico, que rege os processos, se expressando pela energia do trabalho e da dedicação. Nos seres humanos, é nesse corpo que se localizam as sensações e as emoções básicas que constituem nossa energia vital. A comunidade também não estará viva se não tiver essa energia, que é formada pela doação da energia dos seus membros.

Roda de Prosa

Além da expressão do corpo vital, os mais sensíveis poderão também perceber a movimentação do corpo anímico ou astral, que é a alma da comunidade, constituída de motivação e também de pensamentos e sentimentos superiores, formados a partir dos valores. Esse corpo rege as relações e proporciona o espaço para que a integração entre as pessoas seja harmoniosa e plena.

E, se os membros da comunidade doaram a energia de seus próprios corpos e mentes, investindo sua dedicação para estruturar os três corpos anteriores, proporcionarão o nascimento do eu individual próprio daquela comunidade, que a diferencia de todas as demais e inicia sua biografia. Nessa fase, seus membros, movidos pela identificação com uma causa comum, estão aptos a delinear sua cultura e sua filosofia e a definir missão, visão e valores de acordo com sua consciência e suas necessidades.

Frequentemente me perguntam se é possível todas as pessoas do grupo evoluírem assim unidas, com tanta harmonia, nessa criação conjunta de sua escultura social. As pessoas certamente não são iguais, e cada um, com seus ritmos e desafios comportamentais, ainda precisa aprender muita coisa. E é fundamental que o grupo todo tenha a compreensão desse movimento, junto com a aceitação da diversidade humana.  O que impulsiona esse processo é haver um objetivo comum, constante nos acordos, de agir sempre em busca de evolução pessoal ajudando a todos a evoluírem também em nome de um propósito comum que norteará a evolução da comunidade. As comunidades são como famílias e, como tal, reúnem pessoas ainda imaturas, outras mais racionais e ainda outras mais conscientes, e todos têm que dialogar para chegar a objetivos e procedimentos comuns. Para facilitar esses processos, foram desenvolvidas muitas ferramentas de relacionamento, sobre as quais falaremos em outros textos.

Certamente, na comunidade haverá sempre aquela pessoa imatura que ainda não tem profundidade ou clareza sobre o projeto geral, não presta atenção à reunião porque está no celular, mas quer participar da decisão mesmo sem conhecer o assunto. Também terá aquele intelectual racional que quer trazer as bases conceituais, esquematizar conteúdos e procedimentos, colocar regras e parâmetros rígidos e intermináveis para prevenir tudo (como se fosse possível) e tem pouca paciência com o imaturo, o que dificulta os relacionamentos. Felizmente também haverá aquela minoria consciente e madura que tem muita compreensão para com o ser humano e consciência do projeto, que sabe liderar, ouvir a todos, definir em conjunto as prioridades, acolher as diferentes ideias e harmonizá-las sem engessar o fluxo criativo, mas também sem perder o objetivo daquele momento. Se todos agirem com boa vontade e em prol do objetivo comum, essas diferenças podem tornar-se a riqueza e gerar amor entre as pessoas do grupo.

Quando abordarmos aqui a liderança circular sistêmica, veremos que todas as opiniões têm o mesmo valor, porque cada pessoa traz consigo uma parte da verdade. Mas, para alguém estar no mesmo nível de decisão, tem que estar no mesmo nível de compreensão daquilo que está sendo decidido, e isso não é incompatível com a equanimidade e o respeito ao indivíduo. Assim como você não vai dar sua opinião para o endocrinologista sobre qual a quantidade de glicose deve ser administrada para o seu avô diabético, também vai ter a responsabilidade de só dar opiniões sobre o que conhece bem nos processos da comunidade. Por isso há várias formas de tomada de decisão diferentes (que também abordaremos em breve) dependendo do contexto onde estão inseridas.

É assim que se manifesta a fase de gestação da comunidade. As pessoas ainda estão se conhecendo, no início de seu relacionamento, mas têm a grande responsabilidade de gerar e desenvolver esse novo ser, que terá as características que o grupo for capaz de manifestar. “A organização é sempre um reflexo daquilo que seus membros têm como imagem do Ser Humano” como diz o curso Germinar onde fiz minha formação em Pedagogia Social. Portanto, ao trabalhar a imagem do ser humano que desejamos ser, do ser humano que vai morar ali, projetaremos um local ideal para aquele ser humano viver com qualidade. No próximo texto, falaremos sobre as próximas fases de desenvolvimento da comunidade.

Lena Ferreira
Designer em Sustentabilidade
Pedagoga Social e da Cooperação
Consultora de Relações Humanas da Amainar



Comentários

  1. Excelente texto: claro, objetivo é me troux muitos insights. Da pra imaginar como esse fenômeno se dá em todas as organizações, aquela em que trabalho, inclusive! Muito obrigada por essa experiência! Estou aprendendo muito com seus textos.

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    1. Gratidão Nina! Palavras de incentivo como as suas, vindas de quem eu nem conhecia antes, nos dão o sentido de sermos úteis!

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  2. Excelente Lena!!

    Sabendo que alguns fatores devem ser considerados; como tempo de ocupação do espaço, processo de construção da habitação e ou cultivo. Gostaria de perguntar, qual o tempo médio que leva para uma comunidade deixar a fase de gestação e passar a fase de nascimento e desenvolvimento.
    Beijo e bênçãos por este trabalho de compartilhar saberes e amores.

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    1. Nossa que pergunta difícil! Como eu disse no texto, vai depender muito da maturidade de seus membros e mais ainda na disposição e vontade que eles têm de criar uma harmonia. Ás vezes o propósito é tão claro e os vínculos são tão amorosos que é quase imediato, antes mesmo da ocupação do espaço

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  3. Lena , que lindo !!!! Tão esclarecedor para nós, que estamos construindo em diversos aspectos. Grata pela partilha. Gostaria de convidá-la para um dia falar para a APROSPERA , levando esse olha . Tenho certeza que existem vários corações de portas abertas. Irá enriquecer muito a nossa caminhada.Namastê !

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    1. Conheço a APROSPERA, é um lindo trabalho e você uma guia iluminada! Se meu conhecimento puder contribuir, sempre vale a pena trocar com pessoas como vocês!

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  4. Lena, que espaço rico. Parabéns! Que essa semeadura nos conduza a uma colheita do saber e do sabor. Aha!

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  5. Gratidão Lena pelo belo e consciente texto. Neste sábado, dia 29, ele será referência para a nossa Roda de Conversa sobre a construção energética da comunidade na Altifeira e na programação da imersão do grupo Co-laboratoriando Ecovilas. Vamos que vamos...

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